Tenho medo de sujar-me de sangue ao abrir um jornal ou a abrir a porta da minha sala.
Este sangue que é, ao mesmo tempo, impávido e amedrontador.
Mas, quem não tem um pouco de sangue e de pólvora nas mãos?
Mesmo subliminarmente ou pacificamente ou pacientemente.
Quem é o responsável pelo sangue vermelho atirado sobre nós?
Eu quero saber.
Esta semana a crônica policial teve muito que falar ou escrever.
E, nós, muito com o que nos sujar de sangue.
Três episódios ficaram em tela, repetidamente.
Quinta-feira, 16 de outubro de 2008. São Paulo. Polícia civil em greve em frente ao Palácio dos Bandeirantes. A reivindicação é por aumento salarial e incorporação de subsídios da função nos vencimentos. Policiais civis e policiais militares entram em violento confronto. Balas de gás de pimenta, gás lacrimogêneo, balas de borracha e tiros de verdade, resultam em 30 policiais civis feridos. O Sr. José Serra, que governa São Paulo na base da política coronelista, voz macia e atitudes truculentas, recusa-se a negociar e diz que a greve tem cunho político.
Mesma quinta-feira, 16 de outubro de 2008. Rio de Janeiro. O tenente-coronel José Roberto do Amaral Lourenço, diretor do maior presídio de segurança máxima da América Latina, o Bangu 3, dirige seu carro pela Avenida Brasil, considerada a mais importante via expressa da cidade, quando seu carro é metralhado por 60 tiros de fuzil. Seu corpo é atingindo por, pelo menos, trinta tiros. A suspeita é de que a ordem de matar foi dada por traficantes e de dentro do presídio. Roberto Lourenço havia transferido traficantes presos para celas solitárias.
Enquanto isso, novamente em São Paulo, um jovem de 22 anos, inconformado com o fim do namoro mantém sua ex-namorada e uma amiga, ambas de 15 anos, como reféns. O caso durou cerca de 100 horas, transtornou a vida de moradores que não puderam entrar em seus apartamentos, fechou estabelecimentos comercias, escolas, mobilizou a opinião pública e deslocou não sei quantos policiais do GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais), durante cinco dias, ostensivamente, para a área. O desfecho trágico culminou com a invasão do cárcere pela GATE, Eloá gravemente ferida, e já agora em estado de morte cerebral, e sua amiga também baleada. O jovem foi detido e tudo leva a crer que as balas foram do seu revólver calibre 22.
Os três casos revelam o drama citadino e o caos em que estamos submersos.
O episódio do confronte entre policiais expõe a incompetência do governador do Estado mais importante do País em dialogar e resolver conflitos e reivindicações.
Já a morte do diretor de presídio estampa um estado de quase barbárie e uma ofensa à cidadania, revela a força do crime organizado, que faz ecoar seu grito de “tá dominado, tá tudo dominado”.
E, mesmo no caso do seqüestro, que a princípio teve um motivo passional, observamos a incapacidade técnica da Polícia Militar na proteção do indivíduo.
Por outro lado, tudo isso traz em mim a desconcertante pergunta: quantos tiros são necessários para nos matar?
Em quanto mar de sangue teremos que nadar, ainda?
Em que medida nossas mãos também estão sujas. Ou não?
Então, recorro desesperadamente a uma resposta sã, na qual eu possa embasar meus argumentos e minha angústia.
“Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina” [1].
E, ainda assim, não consigo responder a dúvida.
De quantos tiros precisamos para morrermos, se apenas um tiro, somente um, mata-nos.
[1] Trecho do texto “Mineirinho”, de Clarice Lispector (crônica de 1978, publicada no livro “Para não esquecer”, Editora Siciliano).
Este sangue que é, ao mesmo tempo, impávido e amedrontador.
Mas, quem não tem um pouco de sangue e de pólvora nas mãos?
Mesmo subliminarmente ou pacificamente ou pacientemente.
Quem é o responsável pelo sangue vermelho atirado sobre nós?
Eu quero saber.
Esta semana a crônica policial teve muito que falar ou escrever.
E, nós, muito com o que nos sujar de sangue.
Três episódios ficaram em tela, repetidamente.
Quinta-feira, 16 de outubro de 2008. São Paulo. Polícia civil em greve em frente ao Palácio dos Bandeirantes. A reivindicação é por aumento salarial e incorporação de subsídios da função nos vencimentos. Policiais civis e policiais militares entram em violento confronto. Balas de gás de pimenta, gás lacrimogêneo, balas de borracha e tiros de verdade, resultam em 30 policiais civis feridos. O Sr. José Serra, que governa São Paulo na base da política coronelista, voz macia e atitudes truculentas, recusa-se a negociar e diz que a greve tem cunho político.
Mesma quinta-feira, 16 de outubro de 2008. Rio de Janeiro. O tenente-coronel José Roberto do Amaral Lourenço, diretor do maior presídio de segurança máxima da América Latina, o Bangu 3, dirige seu carro pela Avenida Brasil, considerada a mais importante via expressa da cidade, quando seu carro é metralhado por 60 tiros de fuzil. Seu corpo é atingindo por, pelo menos, trinta tiros. A suspeita é de que a ordem de matar foi dada por traficantes e de dentro do presídio. Roberto Lourenço havia transferido traficantes presos para celas solitárias.
Enquanto isso, novamente em São Paulo, um jovem de 22 anos, inconformado com o fim do namoro mantém sua ex-namorada e uma amiga, ambas de 15 anos, como reféns. O caso durou cerca de 100 horas, transtornou a vida de moradores que não puderam entrar em seus apartamentos, fechou estabelecimentos comercias, escolas, mobilizou a opinião pública e deslocou não sei quantos policiais do GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais), durante cinco dias, ostensivamente, para a área. O desfecho trágico culminou com a invasão do cárcere pela GATE, Eloá gravemente ferida, e já agora em estado de morte cerebral, e sua amiga também baleada. O jovem foi detido e tudo leva a crer que as balas foram do seu revólver calibre 22.
Os três casos revelam o drama citadino e o caos em que estamos submersos.
O episódio do confronte entre policiais expõe a incompetência do governador do Estado mais importante do País em dialogar e resolver conflitos e reivindicações.
Já a morte do diretor de presídio estampa um estado de quase barbárie e uma ofensa à cidadania, revela a força do crime organizado, que faz ecoar seu grito de “tá dominado, tá tudo dominado”.
E, mesmo no caso do seqüestro, que a princípio teve um motivo passional, observamos a incapacidade técnica da Polícia Militar na proteção do indivíduo.
Por outro lado, tudo isso traz em mim a desconcertante pergunta: quantos tiros são necessários para nos matar?
Em quanto mar de sangue teremos que nadar, ainda?
Em que medida nossas mãos também estão sujas. Ou não?
Então, recorro desesperadamente a uma resposta sã, na qual eu possa embasar meus argumentos e minha angústia.
“Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina” [1].
E, ainda assim, não consigo responder a dúvida.
De quantos tiros precisamos para morrermos, se apenas um tiro, somente um, mata-nos.
[1] Trecho do texto “Mineirinho”, de Clarice Lispector (crônica de 1978, publicada no livro “Para não esquecer”, Editora Siciliano).
2 comentários:
Sou louco por isso. Esta crônica de Clarice me é a maior lição sobre essa coisam chamada diversidade. Simplesmente, por que ela, Clarice, respeita o outro se colocando no lugar do mesmo. Bravo! Por Clarice, essa crônica e sua sensibilidade!!!!!!!
Amigo marlon, voce tem toda razão. Clarice se coloca no lugar da dor do outro, falando da dor que é do outro, mas que também, é dela.
Beijo grande!
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