Não sei por quanto tempo aquele corpo, que até então para mim, não era nem de homem nem de mulher, apenas um corpo negro estendido no chão, estava ali.
Hoje é um dia de sábado e eu acordo tarde.
Tomo meu café com pão.
Olho pela janela.
O Complexo Policial está sempre para a minha vista da janela e eu vejo quem chega para nele habitar.
Em sua maioria, e previsivelmente, os humanos homens negros.
Eles cantam uma vez pela manhã, uma vez ao meio dia e, mais uma vez, às seis horas da tarde: a hora da ave-maria.
E quem pode com os demônios espalhados pelo mundo ao meio-dia e às seis da tarde?
Ave-Maria!
Os presos em seu negreiro diário.
Ave-Maria!
Todas as quartas-feiras, logo de manhã cedo, quando saio para o meu também, embora cool negreiro diário, a fila já está formada na frente do Complexo.
E quem está na fila, mais uma vez e repetidamente, são elas, as humanas negras mulheres.
Mães, filhas, esposas, companheiras, amantes, comparsas.
As Ave-Marias!
Enfileiradas, esperam para ver seus homens, agora, semanalmente negros.
Hoje é um dia de sábado. Dia de fazer visitas e de ser visitada. Mas, não é um dia de visitas para os que estão no confinamento. Eles não têm visitas aos sábados, como parte da punição para os seus feitos, por que visitas aos sábados só para quem está do lado de cá, para os do bem, para os limpos e puros que nunca pecaram e rezam a Ave-Maria para aqueles do lado de lá.
Hoje é um dia de sábado e eu acordo tarde.
Tomo meu café com pão.
Olho pela janela.
Um corpo negro estendido no chão, e do lado de fora da delegacia, obviamente chama mais a minha atenção do que o café extra-forte que bebo.
Hoje é dia de bolo de chocolate e de lençol limpo com cheiro de alfazema.
E de flores brancas que aromatizam a casa onde mora a minha alma.
O corpo negro ainda está deitado no chão quente em frente da delegacia.
Levanta daí e sai. Ordena um policial.
Levanta daí e sai - manda um outro, armado com revólver. Vai rezar sua ave-maria fuleira para lá!
O corpo negro, magro, vestido de bermuda e camiseta, levanta. Mas, não sai.
Levanta e gesticula.
Sacode uma folha de papel que carrega na mão.
Vejo melhor. O corpo negro é de uma mulher, que em dia de sábado, quer entrar no Complexo, como se ali fosse também uma de suas casas. Mas, que ão é a sua casa, hoje.
Algum tempo passa. E o tempo esfria a minha outra xícara de café. Aliás, o que é que o tempo não esfria, heim?
A mulher consegue entregar a um policial a folha de papel. Ele, o policial, entra na delegacia, mas manda que ela fique do lado de fora.
Agora vejo bem melhor. Um homem negro sai do Complexo Policial.
Ela, que antes era para mim um corpo negro em frente da delegacia, como toda mulher, abraça este homem, quase nu e cambaleante.
E, como somente uma mulher sabe fazer, procura machucados na testa deste seu homem.
E eles saem de mãos-dadas.
No caminho há um grande tonel de lixo.
Os dois param para ver se há alguma coisa que sirva e reviram o lixo, afinal hoje é sábado, dia de flores brancas, lençol limpo, bolo de chocolate e visitas!
E seguem como encantados.
Eu vejo que a grande porta de ferro da delegacia está sempre engolindo os negros que descem dos camburões várias vezes pela manhã, ao meio dia e às seis horas da tarde: a hora da ave-maria.
Há algo de incomum, de absurdo ou de rotineiro nisto?
Os que descem e entram pela porta frontal da delegacia vão, rapidamente, cantar a mesma cartilha. Cantarão uma vez pela manhã, uma vez ao meio dia e uma vez, às seis horas da tarde, lamurias, como gritos de guerra ensaiados, traduzidos em frases que me angustiam e que se desarmonizam com o som dos sinos na hora da ave-maria.
A grande porta de ferro da delegacia, que traga sem cerimônia estes negros, quase sempre é somente uma porta de entrada.
Mas, para desventurados por desventuras, qual a diferença de entrar e sair?
É tudo igual!
Talvez não para aquele corpo negro de mulher, que, subvertendo, deita-se no chão quente de um dia de sábado, a fim de ser percebida pelos agentes policiais, em seus papéis de mantenedores da aparente normalidade.
Eu vou mudar-me daqui muito antes que esta delegacia, que aumenta o incômodo do meu negreiro diário, vá para outro lugar desta cidade de São Salvador da Bahia, onde, dizem, todo mundo é d’Oxum e, ao mesmo tempo, reza ave-marias.
E o tempo? O tempo que arrefeceu minha segunda xícara de café? Este tempo que a tudo desconfigura e amarela?
Há uma somente uma coisa que ele não pode esfriar: a felicidade de quem espera quando encontra quem estava esperando.
Como a felicidade daquela mulher negra desta minha manhã de sábado.
Ave-Maria! Nossa Senhora Negra Aparecida, mãe de deus e ... mulher!
Nota: O Complexo Policial dos Barris está localizado no centro de Salvador e abriga a 1ª. Delegacia de Polícia, a Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes e a Delegacia de Homicídios. A carceragem do Complexo Policial abriga de 250 a 300 presos e está quase 200% acima da sua capacidade. Várias rebeliões acontecem na 1ª.CP por causa da superlotação. Vale lembrar que é um Complexo Policial e não uma penitenciária ou complexo de detenção.
3 comentários:
Essa "paisagem" é ainda muito viva em minha memória. Sempre me fez refletir muito. Mas agora, com teu texto, fiquei pensando em duas mulheres negras. Um espectadora e a outra "espectada". As duas em sua relação com a Justiça. Uma vivida. A outra "fazida". É a canibaliazação do corpo negro feminino em pleno desjejum. E era uma manhã de sábado... Muita coisa para se pensar, muita coisa para se viver...
Olá Augusto-malungo-capoeira!
Realmente ( e infelizmente) esta triste "paisagem" de Salvador é uma das que nos fazem pensar muito e cotidianamente. Aí em Belém também não deve ser muito diferente.
Acrescento às suas palavras que penso existir uma canibalização do corpo negro (homem e mulher. Uma canibalização e expoliação social.
Como diz o Rappa: "Todo camburão tem um pouco de navio negreiro"!
E, aí, nem capoeirista com rabo-de-arraia dá jeito.
Um abraço e obrigada pelo comentário.Volte sempre.
Sueli
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